terça-feira, 29 de setembro de 2009

A Venezuela e o Mercosul

Lula pronunciou essas palavras depois da aprovação, pela Assembléia Nacional
venezuelana, do texto de reforma constitucional que vai a referendo nesse
domingo. O texto não se limita a estabelecer a possibilidade de reeleição ilimitada
do chefe de Estado mas reinventa o Estado venezuelano pela transformação do
presidente na fonte exclusiva da lei.
Os artigos 337, 338 e 339 permitem que o presidente declare estado de exceção,
por tempo ilimitado, sem escrutínio da Corte Suprema e com a revogação do
direito à informação. Esses artigos contrariam a letra da Convenção da ONU sobre
Direitos Civis e Políticos, em vigor desde 1976, e da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, da OEA, em vigor desde 1978.
A federação convertese
em obra do arbítrio presidencial. O artigo 156 permite ao
presidente, à sua vontade, criar ou eliminar estados, municípios e territórios
federais. Pelo artigo 164, retirase
dos estados o direito de organizar a divisão
políticoadministrativa
municipal. Adicionalmente, no artigo 11 concedese
ao
presidente o direito irrestrito de criar “regiões estratégicas de defesa” e designar
autoridades especiais para administrálas.
A vontade do povo deixa de ser definida pelo voto popular. O artigo 16
estabelece a comuna (cidade) como “unidade política primária” e o artigo 136 cria
o “poder popular”, que “não nasce de sufrágio ou eleição qualquer, mas da
presença dos grupos humanos organizados como base da população”, em
conselhos comunais de trabalhadores, camponeses, estudantes, mulheres, jovens
ou idosos. Tais conselhos ganham reconhecimento por decretos presidenciais de
constituição de comunas e são financiados por uma reserva orçamentária fixa.
O poder judiciário é extirpado de sua independência. De acordo com os artigos
264 e 265, uma maioria simples da Assembléia Nacional nomeia e remove, a
qualquer momento, os juízes da Corte Suprema. Os órgãos de “poder popular”
participam da indicação de candidatos a juízes. O mesmo sistema, de acordo com
o artigo 295, é aplicado ao Conselho Nacional Eleitoral, o que assegura à atual
maioria legislativa o controle sobre as regras e a fiscalização das eleições.
A política externa chavista é consagrada como preceito constitucional. Pelo artigo
153, a Venezuela deve unificar a América Latina numa Pátria Grande ou, nas
palavras de Simón Bolívar, “uma Nação de repúblicas”. As forças armadas são
definidas como “antiimperialistas”
e renomeadas, pelo artigo 328, como “Força
Armada Bolivariana”. Os reservistas passam a constituir uma “Milícia Nacional
Bolivariana”. Removese
a interdição de participação dos militares em atividades
políticas, conservandose
apenas a de figurarem como ativistas de partidos
políticos.
O título Duce, que significa “líder”, em italiano, foi usado pela primeira vez pelo rei
Vittorio Emanuele III em 1915, em seguida pelo intelectual e mentor de Mussolini,
Gabriele D’Annunzio, durante sua efêmera regência autoproclamada
de Carnaro,
no Fiume, em 1920, e depois pelo próprio Mussolini, a partir da instalação da
ditadura, em 1925. A reforma constitucional venezuelana representa a entrega do
título de Duce a Hugo Chávez, que como Mussolini fala num “novo socialismo”.
O dístico mussolinista, “tudo no Estado, coisa nenhuma contra o Estado, nada
fora do Estado”, condensa o sentido da nova constituição chavista, que identifica
o Estado à vontade do caudilho. Em campanha para o referendo, Chávez emprega
o rótulo de “traidor” para se referir aos defensores do voto no “Não”, inclusive os
aliados de ontem, que sustentaram seu poder legítimo na hora do golpe de 2002.
É que o Duce é a Pátria e divergir do Duce equivale a trair a Pátria.
Segundo Lula, “democracia é assim: a gente submete aquilo que acredita, o povo
decide e a gente acata o resultado”. Tragicamente, ao que parece, nosso
presidente descreveria nesses termos a elevação de Napoleão Bonaparte a
cônsul, cônsul vitalício e imperador, e a nomeação de Hitler como Führer, que é
tradução literal de Duce. Nesses casos clássicos, como em tantos outros, a
democracia degradouse
em tirania no líquido de sucessivos referendos.
Democracia não é um continente inexplorado. O conceito tem história e seu
sentido está impresso na experiência das sociedades, no texto das leis, no corpo
dos tratados. O Protocolo de Ushuaia, firmado pelas nações do Mercosul, assim
como por Chile e Bolívia, abrese
com o artigo que diz: “A plena vigência das
instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos
processos de integração entre os Estados Partes”.
O Congresso Nacional examina o ingresso venezuelano no Mercosul. “Os governos
passam, mas a sociedade e o país Venezuela ficam”, argumentou o líder do
governo na Câmara, José Múcio Monteiro, justamente quando Chávez identifica
constitucionalmente a Venezuela, como nação e Estado, ao seu próprio regime. O
ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores, circundou o obstáculo do
Protocolo de Ushuaia invocando os interesses de integração comercial, um
raciocínio similar ao de Chico Alencar, líder do PSOL na Câmara, que só defende a
democracia quando isso lhe parece oportuno.
O governo Lula e seus aliados têm o direito de julgar que o Protocolo de Ushuaia

O governo Lula e seus aliados têm o direito de julgar que o Protocolo de Ushuaia
representa um equívoco na trajetória do Mercosul, de propor à sociedade
brasileira a sua revogação e de sugerir uma via estreitamente econômica para a
integração regional. Mas eles agem contra o interesse nacional quando, ocultando
suas posições de fundo, ignoram o tratado e subordinam a palavra empenhada
pelo Brasil à lógica da balança comercial. O Congresso Nacional tem a obrigação
de fazer cumprir o Protocolo de Ushuaia, que é lei, rejeitando por hora a
pretensão venezuelana


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