domingo, 24 de outubro de 2010

EUA: a sangrenta alternativa civilizada

Mais um trecho do livro “Uma história do povo dos Estados Unidos”, de Howard Zinn. 

Os primeiros colonizadores brancos da América do Norte não conseguiram forçar os índios a trabalhar para eles. Os nativos estavam em maior número e conheciam bem aquela terra desconhecida dos europeus. Mesmo com armas superiores, os invasores não se arriscavam a iniciar um massacre. 

A situação causava irritação. Edmund Morgan descreve esse estado de ânimo em seu livro “Escravidão Americana, Liberdade Americana”:

“Se você fosse um colono, consideraria sua tecnologia superior à dos índios. Teria certeza de que você é o civilizado e eles, os selvagens ... Ainda assim, sua tecnologia superior se revelou incapaz de obter grande coisa. Já os índios, mantinham-se bem, rindo de seus métodos superiores, vivendo da terra com abundância e trabalhando menos que você... E quando o seu próprio povo começou a desertar para viver com eles, aí foi demais ... Você resolveu matar os índios, torturá-los, queimou suas aldeias, queimou suas plantações. Isto provou sua superioridade, apesar de tudo. E você fez o mesmo com qualquer um de seu próprio povo que se rendesse ao modo de vida dos selvagens. Mesmo assim, você continuou sem conseguir cultivar alimento suficiente.. .”

A escravidão negra foi a resposta para este dilema dos invasores europeus. Esta era a alternativa civilizada diante da superioridade selvagem no trato com a natureza. Afinal, 50 anos antes de Colombo chegar por aqui, os portugueses já haviam levado dez escravos africanos para Lisboa. Era o começo de um negócio muito lucrativo. O início do capitalismo. Sua certidão de nascimento suja do sangue indígena e negro. Mancha que nunca cessou de aumentar.

Sérgio Domingues

Mais de 500 mil pessoas votam por limite à propriedade

Do Fórum Nacional pela
Reforma Agrária e Justiça no Campo

O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo entrega hoje à sociedade brasileira o resultado do Plebiscito Popular sobre o Limite da Propriedade, realizado de 1º a 12 de setembro de 2010.
Participaram deste plebiscito 519.623 pessoas, em 23 estados brasileiros e no Distrito Federal. Só não participaram do mesmo, Santa Catarina, Amapá e Acre que optaram por fazer o abaixo-assinado, somente. Eram admitidas à votação pessoas acima de 16 anos, portanto em condições de votar.
Duas foram as perguntas formuladas às quais se devia responder sim ou não.
A primeira: Você concorda que as grandes propriedades de terra no Brasil, devem ter um limite máximo de tamanho?
A segunda: Você concorda que o limite das grandes propriedades de terra no Brasil possibilita aumentar a produção de alimentos saudáveis e melhorar as condições de vida no campo e na cidade?
95,52% responderam afirmativamente à primeira pergunta, 3,52, negativamente, 0,63% foram votos em branco e 0,34%, votos nulos.
Em relação à segunda pergunta os que responderam sim foram 94,39%, 4,27% responderam não, 0,89 % foram votos em branco e 0,45%, votos nulos.
Considerando as dificuldades enfrentadas tanto na produção, quanto na distribuição de um mínimo de material, pela falta de recursos e de pessoal disponível; considerando que o Fórum e outras entidades envolvidas não tiveram acesso a qualquer veículo de comunicação de massas; considerando o momento, quando as atenções estão voltadas e os militantes envolvidos nas campanhas eleitorais, pode-se saudar o resultado como muito positivo.
Mais de meio milhão de pessoas se posicionou afirmativamente em relação à necessidade e à conveniência de se colocar um limite à propriedade da terra. Este é um indicador expressivo de que a sociedade brasileira vê a proposta como adequada. É uma amostragem do que pensa boa parcela do povo brasileiro. As pesquisas de opinião ouvem duas ou três mil pessoas e seus dados são apresentados como a expressão da vontade da sociedade!
Mas o que se pode ressaltar como o mais positivo, e que os números não expressam, é todo o trabalho de conscientizaçã o que se realizou em torno do plebiscito. Foi desenvolvida uma pedagogia que incluiu reflexão, debates, organização de comitês, divulgação e outros instrumentos sobre um tema considerado tabu, como é o da propriedade privada.
Em quase todos os estados foram realizados debates em universidades, escolas, igrejas e outros espaços em que se pôde colocar a realidade agrária em toda sua crueza. Para muitos, cujo contato com o campo é praticamente nulo, estes debates abriram um horizonte novo no conhecimento da realidade brasileira. Também se pode saudar como fruto precioso deste processo, os inúmeros trabalhos e textos produzidos pela academia sobre o arcabouço jurídico que se formou em torno à propriedade da terra e sobre aspectos históricos, sociológicos e geográficos da concentração fundiária no Brasil. Não fosse a proposta do plebiscito esta reflexão não teria vindo à tona com a força com que veio.
Este ensaio está também a indicar que um Plebiscito Oficial deveria ser proposto para que todos os cidadãos e cidadãs pudessem se manifestar diante de um tema de tamanha importância para o resgate da cidadania de milhões de brasileiros e brasileiras que lutam, muitas vezes sem sucesso, buscando um pedaço de chão onde viver e de onde retirar o sustento. O Fórum vai continuar firme na luta para que seja colocado um limite à propriedade da terra.
A população brasileira também foi convidada a participar de um abaixo-assinado que continua circulando em todo país até o final deste ano. O objetivo desta coleta de assinaturas é entrar com um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) no Congresso Nacional para que seja inserido um novo inciso no artigo 186 da Constituição Federal que se refere ao cumprimento da função social da propriedade rural.
Já o plebiscito popular, além de consultar a população sobre a necessidade de se estabelecer um limite máximo à propriedade da terra, teve a tarefa de ser, fundamentalmente, um importante processo pedagógico de formação e conscientizaçã o do povo brasileiro sobre a realidade agrária do nosso país e de debater sobre qual projeto defendemos para o povo brasileiro. Além disso, o Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade de Terra veio como um instrumento para pautar a sociedade brasileira sobre a importância e a urgência de se realizar uma Reforma Agrária justa em nosso país.
A proposta da Campanha Nacional pelo Limite da Propriedade de Terra visa pressionar o Congresso Nacional para que seja incluído na Constituição Federal um novo inciso que limite o tamanho da terra em até 35 módulos fiscais - medida sugerida pela campanha do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA).
Além das 54 entidades que compõem o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, também promovem o Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade da Terra, a Assembléia Popular (AP) e o Grito dos Excluídos. O ato ainda conta com o apoio oficial das Pastorais Sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic).

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O golpe no Equador e o terrível inverno político latino-americano que se avizinha

O golpe no Equador e o terrível inverno político latino-americano que se avizinha


Na semana em que a secretária de estado ianque pediu desculpas públicas aos guatemaltecos pela realização, entre 1946 e 1948, de pesquisas médicas em encarcerados, mulheres e doentes mentais daquela nacionalidade com o intuito de testar a capacidade da penicilina na cura da sífilis (inclusive,notícia publicada pela grande mídia), o continente nuestro-americanoassiste, apreensivo, a mais uma tentativa de golpe de estado em um país da aliança bolivariana.

O Equador, do presidente Rafael Correa, teve suas instituições atacadas por um setor da polícia que teria sofrido diminuições em sua renda por conta da nova Lei de Servidores Públicos (ver comentários técnico-jurídicos sobre a referida lei) que lhes retirou uma série de benefícios, os quais seriam compensados por incrementos salariais ou soldos, segundo o governo.
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Mais que, porém, defender a democracia equatoriana, ou a revolução cidadã de Correa (como fizeram várias organizações populares, tais quais aVia Campesina), na qual se inclui a inovadora constituição do Equador (certamente, símbolo máximo do novo constitucionalismo latino-americano, tendo por artífices juristas progressistas do continente como Roberto Gargarela e Caterine Walsh), cabe levantar alguns pontos importantes para se pensar o que ocorre em nosso continente. Vários e importantes teóricos latino-americanos, há algum tempo, anunciavam: “vivemos uma primavera política”. Mas será mesmo? Ainda que esta questão também seja relevante, não é a ela que quero me dedicar e sim ao conjunto de episódios que assolam, há uma década, a América Latina e o que se pode fazer a partir dessa análise mínima.

Desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, vimos vários acontecimentos que tiveram o condão de consolidar uma primavera continental, mas outros tantos que apontam para um rigoroso inverno. Talvez, dentre os principais destes últimos esteja o parco avanço da estratégia bolivariana (que, por si, já é passível de algum questionamento) e a incrível escalada cooptadora nos supostos governos progressistas, em especial, da América do Sul. Mas, sem dúvida alguma, o principal índice meteorológico do inverno rigoroso que se anuncia é a série de golpes de estados a que o continente assiste estarrecido. E pior: contra estes golpes, apenas um discurso e em uníssono – a defesa da legalidade e da constituição!

Não que a defesa da legalidade e do regime constitucional seja, universalmente, uma tática equivocada. No entanto, quando esta tática – parcial por natureza, justamente por ser tática – se torna o horizonte inultrapassável de nosso tempo, um verdadeiro “fim da política”, a estratégia última e utópica de um conjunto geracional, aí sim devemos todos permanecer alerta.

O golpe contra o presidente venezuelano Chávez (documentado de forma incrivelmente direta pela película “A revolução não será televisionada”); a sedição encampada na Bolívia do presidente Evo Morales; e agora a sublevação policialesca no terceiro tripé bolivariano da América do Sul, ou seja, no Equador; todos estes episódios de extremada relevância registram a sucessiva (poderia dizer, até, galopante) organização das forças regressistasno continente, sob a égide da aliança das elites nacionais com o poder imperial (ainda que, como sempre aliás, velada) de amplos setores das diplomacias e governos de países do capitalismo chamado tardio e das corporações transnacionais. Aliados a estas tentativas frustras de golpes, estão os acontecimentos de Honduras e a vergonhosa deposição do presidente Zelaia, assim como a postura política de colombianos e peruanos e a potentíssima ideologia de cooptação nacional popular dos governos do Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai (claro, há de se ressalvar que cada uma destas localidades tem inúmeras peculiaridades e que, por isso, sempre há algo de arbitrário em classificá-las todas de uma mesma forma). Somada a tudo isto, a situação espoliativa no Haiti e a marcha de contínuas repressões no resto do continente, mormente com relação aos movimentos e organizações sociais e populares.

Se, por um lado, o presidente equatoriano Correa pôde resistir heroicamente, bradando:“Si me quieren matar, mantenme”; por outro, parece evidente que não há resistência suficientemente construída para o continente agüentar esta contra-ofensiva. Basta lembrar da postura, ainda que simpática, mas um tanto vacilante, do presidente hondurenho, longe que esteve de honrar o discípulo de Martí que não titubeou ao vociferar: “pátria ou morte!” Sim, o povo sempre resiste. Mas a resistência, é urgente que percebamos!, precisa ser vivida como positividade e não apenas como defesa. Neste caso, a melhor defesa está longe de ser o melhor ataque. Aqui, só se pode defender a vida e nada mais. Sobrevida, portanto, sobredefesa.

E esta denúncia está clara para os principais dirigentes dos países da ALBA. Evo Morales é enfático: os EUAAS executam treinamentos militares em territórios peruano e colombiano e vêm orquestrando golpes de estado na região. Segundo ele (conforme relatado em notícia intitulada Morales acusa a EE.UU. de preparar golpistas en Perú y en Colombia”), os quatro grandes golpes efetivados na última década – a década da consolidação da democracia no continente! – foram levados a cabo por estas intenções imperialistas.

Daí voltar a fazer sentido o discurso de Golberi do Couto e Silva, para quem, astutamente, o ocidente precisava da América Latina, assim como esta necessitava daquele, e que, numa impressionante inversão do ideário latino-americanista, dizia: “para nós, povos desta outra América ainda embrionária e em luta com a miséria e a fome, o penhor supremo da redenção é o senso das responsabilidades próprias na defesa do Ocidente”. E o que significava esta defesa, a qual ganhou o nome pouco oportuno de defesa ou segurança nacional? Eis a resposta: “que estaremos prontos a defender, sem tegiversações covardes nem subterfúgios desonrosos, quando soar a hora extrema da prova”. E esta prova é a prova de fogo da guerra: “essa é a guerra – total, permanente, global, apocalíptica – que se desenha, desde já, no horizonte sombrio de nossa era conturbada. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela, com determinação, com clarividência e com fé”. São trechos, das conclusões e da introdução, do livro de Couto e Silva, chamado “Geopolítica do Brasil” e escrito em 1966.

É claro que se trata de texto inserido no temor contextual do anticomunismo, bem como na guerra fria, na qual o ocidente capitalista se contrapunha ao oriente, nem tão socialista assim. De qualquer forma, a clareza histórica das linhas, para quem as lê, é surpreendente, mesmo porque pede bênção (ou reconhecimento) aos países desenvolvidos e, em especial, aos Estados Unidos da América Anglo-Saxã. E tudo o que vivemos hoje parece, infelizmente, lembrar os tempos em que se preparavam paramilitares no Panamá. Agora, é na Colômbia e no Peru. Ontem, o padre Camilo Torres pagara com sua vida. Hoje, John Saxe-Fernández e Noam Chomskyesbravejam diuturnamente contra as bases militares que rodeiam a ALBA.
E o que fazemos nós? Não quero com isso recair em nenhum simplismo do tipo: “peguemos em armas!” Mas é necessário compreender que a geopolítica nunca se purificou e se há alguma grande lição a partir do pensamento de Golberi é isto: a geopolítica continua utilizando armas, ainda que dentre estas estejam também, e fortemente, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento.
O estado de exceção instaurado, oficialmente, por Correa, no Equador, talvez deixe sem chão os teóricos da vida nua (a não ser que o conceito – estado de exceção – se molde apenas a situações particulares – e daí seria preciso limpar o terreno e voltarmos à noção de poder, já no velho Bênjamin). Daí que nem o constitucionalismo nem o novo constitucionalismo nem mesmo um futuro novíssimo constituciomalismo nos sejam suficientes. É a consciência do povo quem ditará os rumos destes processos, que continuam a ter nas armas combatentes ferozes – e, por ora, combatentes apenas inimigos. Talvez ainda Cuba e Nicarágua (países também membros da ALBA) possam complementar os ensinamentos de Venezuela, Bolívia e Equador. Não desperdicemos quaisquer experiências, pois que são preciosas todas elas e toda consciência tem de se fazer objetiva também.