quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O golpe no Equador e o terrível inverno político latino-americano que se avizinha

O golpe no Equador e o terrível inverno político latino-americano que se avizinha


Na semana em que a secretária de estado ianque pediu desculpas públicas aos guatemaltecos pela realização, entre 1946 e 1948, de pesquisas médicas em encarcerados, mulheres e doentes mentais daquela nacionalidade com o intuito de testar a capacidade da penicilina na cura da sífilis (inclusive,notícia publicada pela grande mídia), o continente nuestro-americanoassiste, apreensivo, a mais uma tentativa de golpe de estado em um país da aliança bolivariana.

O Equador, do presidente Rafael Correa, teve suas instituições atacadas por um setor da polícia que teria sofrido diminuições em sua renda por conta da nova Lei de Servidores Públicos (ver comentários técnico-jurídicos sobre a referida lei) que lhes retirou uma série de benefícios, os quais seriam compensados por incrementos salariais ou soldos, segundo o governo.
-
Mais que, porém, defender a democracia equatoriana, ou a revolução cidadã de Correa (como fizeram várias organizações populares, tais quais aVia Campesina), na qual se inclui a inovadora constituição do Equador (certamente, símbolo máximo do novo constitucionalismo latino-americano, tendo por artífices juristas progressistas do continente como Roberto Gargarela e Caterine Walsh), cabe levantar alguns pontos importantes para se pensar o que ocorre em nosso continente. Vários e importantes teóricos latino-americanos, há algum tempo, anunciavam: “vivemos uma primavera política”. Mas será mesmo? Ainda que esta questão também seja relevante, não é a ela que quero me dedicar e sim ao conjunto de episódios que assolam, há uma década, a América Latina e o que se pode fazer a partir dessa análise mínima.

Desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, vimos vários acontecimentos que tiveram o condão de consolidar uma primavera continental, mas outros tantos que apontam para um rigoroso inverno. Talvez, dentre os principais destes últimos esteja o parco avanço da estratégia bolivariana (que, por si, já é passível de algum questionamento) e a incrível escalada cooptadora nos supostos governos progressistas, em especial, da América do Sul. Mas, sem dúvida alguma, o principal índice meteorológico do inverno rigoroso que se anuncia é a série de golpes de estados a que o continente assiste estarrecido. E pior: contra estes golpes, apenas um discurso e em uníssono – a defesa da legalidade e da constituição!

Não que a defesa da legalidade e do regime constitucional seja, universalmente, uma tática equivocada. No entanto, quando esta tática – parcial por natureza, justamente por ser tática – se torna o horizonte inultrapassável de nosso tempo, um verdadeiro “fim da política”, a estratégia última e utópica de um conjunto geracional, aí sim devemos todos permanecer alerta.

O golpe contra o presidente venezuelano Chávez (documentado de forma incrivelmente direta pela película “A revolução não será televisionada”); a sedição encampada na Bolívia do presidente Evo Morales; e agora a sublevação policialesca no terceiro tripé bolivariano da América do Sul, ou seja, no Equador; todos estes episódios de extremada relevância registram a sucessiva (poderia dizer, até, galopante) organização das forças regressistasno continente, sob a égide da aliança das elites nacionais com o poder imperial (ainda que, como sempre aliás, velada) de amplos setores das diplomacias e governos de países do capitalismo chamado tardio e das corporações transnacionais. Aliados a estas tentativas frustras de golpes, estão os acontecimentos de Honduras e a vergonhosa deposição do presidente Zelaia, assim como a postura política de colombianos e peruanos e a potentíssima ideologia de cooptação nacional popular dos governos do Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai (claro, há de se ressalvar que cada uma destas localidades tem inúmeras peculiaridades e que, por isso, sempre há algo de arbitrário em classificá-las todas de uma mesma forma). Somada a tudo isto, a situação espoliativa no Haiti e a marcha de contínuas repressões no resto do continente, mormente com relação aos movimentos e organizações sociais e populares.

Se, por um lado, o presidente equatoriano Correa pôde resistir heroicamente, bradando:“Si me quieren matar, mantenme”; por outro, parece evidente que não há resistência suficientemente construída para o continente agüentar esta contra-ofensiva. Basta lembrar da postura, ainda que simpática, mas um tanto vacilante, do presidente hondurenho, longe que esteve de honrar o discípulo de Martí que não titubeou ao vociferar: “pátria ou morte!” Sim, o povo sempre resiste. Mas a resistência, é urgente que percebamos!, precisa ser vivida como positividade e não apenas como defesa. Neste caso, a melhor defesa está longe de ser o melhor ataque. Aqui, só se pode defender a vida e nada mais. Sobrevida, portanto, sobredefesa.

E esta denúncia está clara para os principais dirigentes dos países da ALBA. Evo Morales é enfático: os EUAAS executam treinamentos militares em territórios peruano e colombiano e vêm orquestrando golpes de estado na região. Segundo ele (conforme relatado em notícia intitulada Morales acusa a EE.UU. de preparar golpistas en Perú y en Colombia”), os quatro grandes golpes efetivados na última década – a década da consolidação da democracia no continente! – foram levados a cabo por estas intenções imperialistas.

Daí voltar a fazer sentido o discurso de Golberi do Couto e Silva, para quem, astutamente, o ocidente precisava da América Latina, assim como esta necessitava daquele, e que, numa impressionante inversão do ideário latino-americanista, dizia: “para nós, povos desta outra América ainda embrionária e em luta com a miséria e a fome, o penhor supremo da redenção é o senso das responsabilidades próprias na defesa do Ocidente”. E o que significava esta defesa, a qual ganhou o nome pouco oportuno de defesa ou segurança nacional? Eis a resposta: “que estaremos prontos a defender, sem tegiversações covardes nem subterfúgios desonrosos, quando soar a hora extrema da prova”. E esta prova é a prova de fogo da guerra: “essa é a guerra – total, permanente, global, apocalíptica – que se desenha, desde já, no horizonte sombrio de nossa era conturbada. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela, com determinação, com clarividência e com fé”. São trechos, das conclusões e da introdução, do livro de Couto e Silva, chamado “Geopolítica do Brasil” e escrito em 1966.

É claro que se trata de texto inserido no temor contextual do anticomunismo, bem como na guerra fria, na qual o ocidente capitalista se contrapunha ao oriente, nem tão socialista assim. De qualquer forma, a clareza histórica das linhas, para quem as lê, é surpreendente, mesmo porque pede bênção (ou reconhecimento) aos países desenvolvidos e, em especial, aos Estados Unidos da América Anglo-Saxã. E tudo o que vivemos hoje parece, infelizmente, lembrar os tempos em que se preparavam paramilitares no Panamá. Agora, é na Colômbia e no Peru. Ontem, o padre Camilo Torres pagara com sua vida. Hoje, John Saxe-Fernández e Noam Chomskyesbravejam diuturnamente contra as bases militares que rodeiam a ALBA.
E o que fazemos nós? Não quero com isso recair em nenhum simplismo do tipo: “peguemos em armas!” Mas é necessário compreender que a geopolítica nunca se purificou e se há alguma grande lição a partir do pensamento de Golberi é isto: a geopolítica continua utilizando armas, ainda que dentre estas estejam também, e fortemente, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento.
O estado de exceção instaurado, oficialmente, por Correa, no Equador, talvez deixe sem chão os teóricos da vida nua (a não ser que o conceito – estado de exceção – se molde apenas a situações particulares – e daí seria preciso limpar o terreno e voltarmos à noção de poder, já no velho Bênjamin). Daí que nem o constitucionalismo nem o novo constitucionalismo nem mesmo um futuro novíssimo constituciomalismo nos sejam suficientes. É a consciência do povo quem ditará os rumos destes processos, que continuam a ter nas armas combatentes ferozes – e, por ora, combatentes apenas inimigos. Talvez ainda Cuba e Nicarágua (países também membros da ALBA) possam complementar os ensinamentos de Venezuela, Bolívia e Equador. Não desperdicemos quaisquer experiências, pois que são preciosas todas elas e toda consciência tem de se fazer objetiva também.

Nenhum comentário:

Postar um comentário